27.1.08

Visão brasileira do filme de Mungiu (2)

Reproduzo, a seguir, artigo publicado em outubro de 2007 na Revista Cinética, de autoria de Cléber Eduardo, sobre o filme "4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias" de Cristian Mungiu:

Crueldade na observação

Quem estava se habituando com a dramaturgia e a estética do “tripé quebrado” dos filmes romenos recentes, conforme foi colocado na cobertura do Festival do Rio de 2007, pode estranhar a dramaturgia e a estética do “plano-seqüência observacional” de 4 meses, 3 semanas e 2 dias, de Cristian Mungiu, que tanto ganhou a Palma de Ouro do Festival de Cannes, quanto provoca o desprezo convicto de alguns críticos. Há quem acuse o filme de ser apelativo, há quem veja sadismo no enfoque. Mungiu lança um olhar cruel para as situações, sem redenção/superação para as personagens, com disposição de trazer sinais de determinada sociedade (a romena), em determinado momento histórico (os anos 80, ditadura de Ceausescu), mas vivenciados pela experiência individual da protagonista, Otilia (Anamaria Marinca). É na atmosfera de estado policial, burocratizado, porém falho nas duas instâncias, que essa Romênia se insinua, sem ser explicitada, sem se tornar questão superior a experiência pessoal de Otilia.

De uma geração que, na adolescência ou início da juventude, testemunhou o fim de um período (o do regime comunista cheio de “nãos”), Mungiu volta a esse período, como outros contemporâneos seus, mas sem querer exorcizá-lo com humor, ao contrário de A Leste de Bucareste , de Corneliu Porumboiu, ganhador da Câmera D'Or no Festival de Cannes de 2006, tampouco tratá-lo com alguma poesia na aproximação com os personagens, tomando caminho diferente de Como Festejei o Fim do Mundo, de Catalin Mitulescu. Ao contrário desses dois filmes (e ao contrário também de Caindo de Amor, de Tudor Girgiu), não se a anarquia narrativa, tampouco a liberdade de organização, evidências de rebeldia diante de regras.

Mungiu é mais duro e mais rigoroso. A narrativa minuciosa em sua observação, cirúrgica em seu olhar, assim como seca e gravecertamente em dívida com Robert Bresson e com os irmãos Dardenne, com Mouchette e Rosetta, mas com uma outra dinâmica e encadeamento, certamente menos taquicárdica que o batimento dramático dos Dardenne, também menos transcendental no sofrimento que em Bresson e Rossellini, para os quais a dor carrega algo de sagrado e de vocação. Se trabalha na conciliação de uma dramaturgia do limítrofe com uma observação de cada gesto, elevando o aparente banal a uma condição exasperante, vê-se uma busca pelo controle do trem no trilho – de uma certa forma exercendo vigilância sobre cada passo de Otilia, como se reproduzisse com mais amplitude e detalhe o olhar do Estado-patrulha. A diferença é que essa patrulha, em vez de ser de Estado, é um estado do olhar de Mungiu.

O título se refere ao tempo de gravidez de Gabita (Laura Vasiliu), a amiga de Otilia. Elas dividem um quarto. São jovens, universitárias. Pouco sabemos delas além de alguns indícios de uma situação financeira sem folgas. Como a gestacão em andamento é indesejável, Otilia, jamais abandonada pela câmera, estende a mão à amiga. Providencia o hotel onde o aborto será realizado, leva o aborteiro, consegue parte do dinheiro, paga outra parte com o corpo e, durante o aniversário da mãe de seu namorado, quando a câmera não sai de seu rosto enquanto os convidados da “sogra” falam a mesa, ela pensa na amiga no hotel.

Mungiu filma quase o tempo todo com a câmera na mão, mantendo, nesse sentido, vínculo com a estética do tripé quebrado, seja quando a câmera não caminha, seja quando sai atrás de Otilia – menos para tematizar o próprio plano-sequência como conceito estético ou como fetiche técnico, mais para tentar apagá-lo em seu observacional, de modo a manter o efeito de um olho que não desgruda de seu interesse. Por essa razão, quando deixa ela se afastar um pouco, trazendo mais do espaço para o quadro, na verdade somente para esse espaço potencializar a composição do plano, essa câmera destoa. Passa a buscar efeitos plásticos.

Também por essa mesma razão, pela quebra de um fluxo que parece seguir naturalmente, destoam os efeitos dramáticos, empregados para se salientar algo. Pode-se perceber esse deslocamento quando o aborteiro troca parte do pagamento por sexo ou quando ao final Gabita olha o cardápio do restaurante do hotel após ser servida com um prato cheio de carne. O sexo como pagamento nos mostra o pior de um homem que, até então, vinha agindo distante do estereótipo, mostrado para isso em momento de preocupação com sua suposta mãe. Mais que isso, porém, o sexo parece estar , acima de tudo, para ferir a dignidade das moças. o olhar perdido para o cardápio, diante da carne, é opção óbvia e banal demais. Para a ocasião, pelo menos.

Mais pertinente é a crueldade de Mungiu na maneira de mostrar determinadas situações. A explicação do processo do aborto e de seus efeitos/riscos, ministrada antes da retirada do feto, remete ao ritual mórbido-estatal de Não Matarás, de Kieslowski, que por sua vez poderia remeter à primeira entrada no quarto de hotel de Nana em Viver a Vida, de Godard, quando a câmera e os olhos dela enquadram uma toalha para fins pós-sexo antes de sermos bombardeados por dados e pela cultura da prostituição. Mungiu não quer poupar o espectador, não deseja aliviar nossa percepção porque, se a câmera está com Otilia, o aparato nos coloca como testemunhas do vivido e do visto por elainclusive o feto.

3 filmes romenos no Festival do Rio

O Festival de Cinema do Rio, que em 2007 se desenrolou de 20 de setembro a 04 de outubro, apresentou 3 filmes romenos: 12:08 A Leste de Bucareste (A fost sau n-a fost?), de Corneliu Porumboiu (Romênia, 2006); Como Festejei o Fim do Mundo (Comment j'ai feté la fin du monde), de Catalin Mitulescu (Romênia/França, 2006); e Caindo de Amor (Legaturi bolnavicioase), de Tudor Girgiu (Romênia, 2006). Por ocasião da apresentação desses filmes romenos, publicou-se na Revista Cinética o artigo "Novo Cinema Romeno (ou as narrativas do tripé quebrado)", de autoria de Cléber Eduardo, abaixo reproduzido:

Em um determinado momento de 12:08 A Leste de Bucareste, estréia em longa-metragem de Corneliu Porumboiu (ganhador da Camera d`Or em Cannes 2006), o dono de uma pequena emissora de televisão questiona, durante um programa de entrevistas do qual também é entrevistador, por que o cinegrafista está subvertendo os enquadramentos. O cinegrafista, que havia sido repreendido antes por filmar um grupo musical no estúdio da emissora com a câmera na mão, retruca na lata: "O tripé quebrou". Pois essa imagem do tripé quebrado e seus efeitos na imagem do programa (e do filme) podem ser tomadas como metáfora-síntese desse e de outros dois filmes romenos presentes no Festival do Rio: Caindo de Amor, de Tudor Girgiu, e Como Festejei o Fim do Mundo, de Catalin Mitulescu, (prêmio de melhor atriz para Doroteea Petre na mostra Un Certain Regard).

Os três realizadores são estreantes, todos com idade inferior a 35 anos. Essa proximidade geracional não explica, completamente, as características em comum entre seus filmes, que, no estilo e nos enfoques, cada uma das obras tem suas próprias distinções. Também não se pode vê-las apenas como resultado de um outro tipo de proximidade – a cultural e geográfica com os vizinhos ex-comunistas do Leste Europeu. Se é inegável o parentesco desses filmes, em níveis variados, com certo cinema iugoslavo (dos anos 70 em diante), também parece se insinuar, em suas dinâmicas, algo próprio do contexto romeno, não apenas por serem fincados no universo histórico/identitário do país (no fim ou após a era Ceausescu, ditador do período comunista, que caiu do poder na virada de 1989 para 1990), mas, sobretudo, por adotarem ou serem adotados pela "dramaturgia do tripé quebrado".

Se o cinegrafista de 12:08 A Leste de Bucareste subverte o padrão de enquadramento ao tomar a câmera na mão no estúdio de televisão, mudando o padrão "câmera no tripé" até o momento da entrevista anedótica, nesses filmes também há uma subversão da estrutura organizadora dos fatos exibidos. Esse cinegrafista, portanto, sintetiza os cineastas. Cada um deles parece dar uma banana para uma noção adequada de roteiro, abrindo mão da organização para se concentrar na força autônoma dos fragmentos. É como se o tripé do roteiro, para insistirmos nessa imagem tão feliz, tivesse quebrado, abrindo passagem para uma narrativa torta, às vezes destrambelhada, às vezes de entendimento rarefeito ou confuso, mas que, justamente por conta dessa anarquia menos ou mais controlada, impõe-se com frescor, vitalidade e originalidade, ainda que com êxitos distintos (menos em Caindo de Amor, mais em 12:08 A Leste de Bucareste).

Tomemos como exemplo 12:08 A Leste de Bucareste. A primeira metade é uma reunião de fragmentos filmados com razoável rigor, câmera fixa, um humor controlado, apresentando, com essas características, ambientes e personagens, porém com uma noção rarefeita de evolução narrativa. Temos nesse começo a autonomia das partes sobre a unidade do conjunto. De forma sutil, no entanto. Na segunda metade, centrada na entrevista de televisão, dá-se adeus à sutileza. Bem-vindos ao caos. A atitude da imagem, agora com poucas variações de ângulo, muda completamente. O humor mergulha no insólito, sem medo de perder a força com o esgarçamento e a repetição das piadas, até porque se, realmentesinais de cansaço em alguns momentos, o filme logo retoma o fôlego adiante. É um filme de momentos, com a primeira metade empregada como prólogo com três núcleos narrativos, e a segunda como um extenso curta-metragem progressivamente anárquico, de dar câimbra no maxilar. As gargalhadas extraordinárias da platéia mostravam que nenhuma comédia vista nos últimos meses (com exceção, talvez, de As Leis de Família, de Daniel Burman), conseguiu tal adesão de uma sala.

A piada de 12:08 A Leste de Bucareste também tem, à sua maneira, um lado sério com a história romena (ainda que sem a seriedade cômica de Nanni Moretti em O Crocodilo). O alvo não é Ceausescu, mas seus adversários. Durante a entrevista-show, desmistifica-se o heroísmo de supostos revolucionários, que, em 22 de dezembro de 1989, horas antes do ditador cair, teriam protestado contra o regime em uma cidadezinha. Mas teriam mesmo protestado contra a presença do tirano ou apenas celebrado sua queda em praça pública? Essa é a investigação feita, ao vivo, pelo apresentador do programa. Sob suspeita, um professor de História (não por acaso), Manescu, conhecido por suas bebedeiras. Ao seu lado, um velho hilário, Piscosi (o impagável Mircea Andreescu). Insinuando um processo osmótico no processo de transição política, que teria acontecido em parte por sua própria corrosão, o filme propõe o acerto de contas com o passado, mas apenas para ridicularizar esse resgate e reivindicar um olhar para a frente, sem falsas mitificações e sem ressentimentos engessadores. Não se trata de apagamento da História, mas de uma libertação em relação a seus fantasmas. Até porque coisas mudaram e outras permaneceram na substituição do comunismo pelo capitalismo (como mostra o filme). Corneliu Porumboiu faz dessa consciência uma tremenda piada.

Em Como Festejei o Fim do Mundo, a História também é questão central, mas não mais de forma retroativa. Com a mesma reivindicação do "olhar para a frente", aqui retorna-se ao momento Ceausescu em seu crepúsculo, até a queda no fim de 1989. Temos como protagonista, também em uma pequena cidade, a adolescente Eva – nome simbólico do Gênesis, pelo que carrega de desobediência (em relação à autoridade divina). Estigmatizada como rebelde por conta de uma travessura e de sua reação à punição, a moça, silenciosa e tranquila em sua atitude de resistência à autoridade, planeja fugir do país opressivo com um vizinho um tanto panaca. Estamos em mais um filme com a dramaturgia do tripé quebrado: a sucessão de elipses desdramatiza qualquer passagem (principalmente a da fuga abortada), e o desfecho entra em cena chutando a porta. O mais interessante, porém, é como um coadjuvante, irmão de Eva, passa a ganhar espaço, quase sempre como observador do entorno, com seu olhar de aprendiz infantil. O que importa, no fundo, são as partes (mais uma vez), ou uma maneira de se filmar Eva e seu irmãozinho. Seria essa liberdade de organização ou essa recusa a um elo ordenador um acerto de contas retroativo com a ditadura Ceausescu?

Se o ditador é uma questão nesses dois filmes, sem dúvida, é porque a nova geração deseja enterrá-lo, seja pela superação de sua figura, seja pela piada em torno de sua queda. No entanto, em Caindo de Amor, Ceausescu é uma ausência. Estamos na Bucareste contemporânea, sem figuras de autoridade explícitas, exceção feita a autoridade (sem autoritarismo) dos pais das personagens. O que vemos, na verdade, é o caos emotivo, motivado, ao menos em parte, pela subversão de comportamentos (lesbianismo e incesto). Duas adolescentes se envolvem, mas uma é amante do irmão. Subversão maior, porém, é o efeito "tripé quebrado". Ele aqui se manifesta no ruído entre a narradora e o enfoque sobre ela. Quem narra, na verdade, é a coadjuvantemas, entre suas palavras e as ações, há um deslocamento. Essa opção, somada às elipses, geram estranhamento, não sem confusão. Se podemos tratar essa característica como um problema narrativo ou dramatúrgico, também temos de relativizá-la dentro desse contexto de liberdade organizadora, que, com resultados distintos, conferem aos três filmes romenos um traço de saudável anarquia.